Por Sylvio Nunes
Podemos dizer que vivemos numa democracia porque flanamos de forma parisiense nos bairros privilegiados das grandes, médias e pequenas metrópoles. Mas se refletirmos a fundo sobre a questão social e suas perversas consequências, que aliena seres humanos de padrões educativos, sanitários, convivenciais e éticos mínimos na compreensão falha do Estado de Direito, chegamos a conclusão que o discurso liberal de cunho democrático não entende a relação entre liberdade e miséria.
A Carta aos Brasileiros é um primor de neutralidade à mordaça que impede um terço da sociedade de permitir-se uma imersão mínima em uma ou duas quadras das comunidades miseráveis que cercam nossa periferia. A possibilidade de entrar por engano numa via de acesso a uma favela é vista com terror. Obnubila a noção de que 90% dentre milhares de favelados são gente boa. Mas é um vetor inovador no âmbito de uma elite conservadora.
Compreendo que há uma busca de espaço e garantias mínimas ao funcionamento da dita ordem democrática que permitiria funcionalizar mudanças, e que fazer o necessário muitas vezes é o que vislumbra nosso alcance intelectivo. Mas desde que eclodiram as cloacas desconhecidas que habitavam reprimidas em nossas entranhas sociais, essa subcultura ativa de violência verbal, de ativismo reacionário e cinismo moldado numa ética medieval, a estética da fala passou a moldar um ponto de ruptura irrefreável.
Já não estamos mais diante da possibilidade de arrastar esse submundo de ameaçadora boçalidade para a areia da praias. A poluição não emergiu do fundo da baía de nossa civilização, ela estava lá incrustada e negra. E como um passe de mágica fenomenologicamente mal compreendido, emergiu como um tsunami sobre as nossas areias. Não que não houvessem coliformes flutuando aqui e ali antes. Mas nunca se viu essa avassaladora cavalaria polimórfica tornar-se hegemônica nos centros de decisão e poder. Contaminou e prosperou. Mas tem limites.
Ativou, no entanto, uma ação esperançosa apesar de retardatária de anticorpos e glóbulos teimosos, leucócitos histéricos e a turma progressista que agem no sangue da alma patriótica para prevenir e reagir aos agentes infecciosos.
Creio sinceramente que essa emanação grotesca de peripatéticos de extrema direita, esse cenário de zumbis babando discursos preconceituosos, os falsos zorros da moralidade política, os usurários da fé com ódio, toda essa argamassa tinha que se manifestar de alguma forma. Ter vindo à tona pode significar efeito do presente ou magma conjuntural de erros políticos. Mas pode significar que sempre estiveram presentes e que lhe faltavam as cloacas pra se movimentarem.
Essa libido de conotação neofascista em que um imenso coletivo passa a representar o interregno da morbidez, definida por Gramsci como resistência ao novo que nasce justamente quando o "velho" não quer morrer, pode ser danosa a curto prazo, dolorosa à coexistência pacífica ou guerreira, mas representa um momento de partida e de evolução crítica. Nunca haverá uma uniformidade porque a perfeição deriva das diferenças críticas e da superação.
Aos idosos é muitas vezes compreensível o pessimismo porque cansa a impressão de derrota e afronta que o senso democrático sofreu no âmbito das instituições de Estado, a percepção de degenerescência e cumplicidade institucional de setores importantes.
Aos jovens está oferecido o momento ideal de convergência e afluência de seus coletivos, de aglutinação ideológica, de resistência criativa e rebeldia que mesmo quando passa dos limites representa o necessário.
A Carta aos Brasileiros pode estar distante no ápice de sua linha de atuação e mobilização social. Mas é um ponto de inflexão de uma parte significativa de uma elite que sempre se caracterizou pela passividade e hoje se posiciona.
Apesar da esperança implícita que esse texto defende, ainda paira uma nuvem negra de apreensão sobre a possibilidade de conflitos durante todo o processo eleitoral e após.
Comentários